Crónica de Jorge C Ferreira
Estrelas
Um desejo, uma loucura, a ternura que se procura. Será apenas um beijo prometido e nunca dado? Será a fuga tantas vezes ensaiada e nunca conseguida? Fugas à rotina, ao rame-rame. Aquela ilha sempre sonhada e nunca encontrada. Uma ilha que parece navegar. Uma ilha que sonhámos de encantar. Um mar esmeralda. Uma areia branca. As palmeiras a fazerem vénias ao mar. Tanto para navegar. Tanto para sonhar. A nossa Ítaca.
As mesinhas e as falsas doenças. Os termómetros de mercúrio que subiam com a luz das mesas de cabeceira. Untar a barriga com azeite. Papas de linhaça. Pachos de álcool no peito. O eterno Vick Vaporub. Sal grosso e água quente. Uma banheira que nos consola o cansaço. Uma vassoura, virada ao contrário, atrás da porta. Hábitos antigos para fazer desandar visitas cansativas. Os responsos aos Santos protectores. Santo António, para achar coisas perdidas, Santa Bárbara, para nos proteger das trovoadas. Responsos que as mais velhas da casa sabiam de cor. Cordéis entrelaçados em pernas de cadeiras e tantas outras coisas de que já não me lembro.
Os clisteres, as mangueiras, as pipetas e os penicos de louça e de esmalte. A explosão dos intestinos. Esvaziar o indesejável. As voltas e revoltas do nosso corpo. A falta de respostas a situações limite. A impotência de ajudar. O cheio e o vazio. As inesperadas companhias. A falência dos órgãos. O chegar a outro estádio? Não sabemos! Haverá alguma cerimónia de passagem? Será leve ou pesada? Sabemos tão pouco! Sabemos quase nada! Por vezes temos medo de saber o que não sabemos. Por vezes vencemos o pânico e aventuramo-nos. Entramos numa aventura sem fim. Avançamos sem destino conhecido. Todos os dias estamos mais longe do que não conhecemos porque tudo está a afastar-se de nós. Velocidades que não controlamos.
Somos a inexistência. Somos um acaso. Somos o que ninguém avista. Por isso nos perdemos com tanta facilidade. Somos a contrariedade. Somos o pingo de óleo deixado num túnel mal iluminado. A vertigem de chegar e partir sem ir a lado algum. Só conhecemos este espaço e os arredores. Os telescópios cada vez descobrem mais lugares. Lugares a anos-luz de nós. Buracos negros que não conseguimos atravessar. Novas galáxias. Outros tempos e espaços. O inalcançável. O inimaginável. O nunca sonhado.
Já vos disse que, desde criança, fui um perscrutador do céu. Desde novo entendi que não tinha fim. Havia uma superstição que dizia que contar as estrelas do céu fazia nascer cravos nos dedos. Não ligava. Era um fascínio que não me largava. Era uma busca incessante. Procurar o nunca achado. Tentar entender o significado de tanta coisa desconhecida. Só saía daquele telhado quando me obrigavam a ir para dentro. Os únicos cravos de que me lembro de ter na mão são os terrenos cravos vermelhos da revolução.
Tantos anos de busca e pouco mais sabemos. Continuamos a estragar esta pequena esfera achatada nos polos. É verdade que fomos à Lua, a Marte enviámos naves. Mas isso é o que eu aqui chamo os nossos arredores.
Tanto por descobrir!
«Tu de vez em quando parece que estás noutro mundo.»
Fala da Isaurinda.
«Tu sabes que sempre me interessei por essas coisas. A busca contínua.»
Respondo.
«Vê é se não ficas doidinho. Deus te ajude.»
De novo Isaurinda, e vai, de mãos postas.
Jorge C Ferreira Maio/2024(437)
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Uma crónica que no fundo é um verdadeiro exercício de memória . Quem de nós não conheceu aquelas crendices, rezas , utensílios , mezinhas e mesinhas …?
Parece- nos um passado tão longínquo que a nossa memória quase não consegue abarcar. Mas o nosso presente de tão rápido que tudo se desenvolve também já nos parece difícil de agarrar .
Perdidos um pouco , entre a memória de um passado longínquo e o conhecimento de um presente distante … um barco que navega no mar , ora calmo, ora revolto. Que o pequeno espaço em que conseguimos apanhar os remos e navegar um pouco , seja um espaço de felicidade.
Obrigado Lénea. Nossos tempos antigos e tens razão as mezinhas que nos curavam. É bonito o que escreveste. Vamos pegar nesses remos, entrar mar adentro e ser aventura. A minha gratidão. Abraço grande
Maravilhoso. As memórias da vida.
Mais uma viagem. Tantos sonhos realizados, outros que ficaram pelo caminho. As rezas, as crenças, os costumes que atravessaram uma geração. Todos pareciam viver no mesmo bairro.
As mezinhas caseiras, na falta de médicos e medicamentos.
O caminho de busca que continuamos a fazer, agora com passo lento.
Cada dia uma surpresa. O planeta em mudança constante. A humanidade transforma -se a toda a hora.
O fim da viagem é desconhecido.
Obrigada Amigo por estes momentos de reflexão.
Um abraço
Obrigado Eulália. Sempre assertiva. Sempre nas passadas dos caminhos percorridos. Aprender mais uma coisa e cada vez saber menos. Pricurar sempre. A minha gratidão. Abraço enorme
“eles não sabem de quem nos
visita nos sonhos…”
não conhecem os que vieram de
muito longe para nos afagar e deixar suas impressões marcadas na face.
-será que só nós sabemos de saudade, de vida percorrida aos soluços, das veredas com tapetes
de flores pisadas por descalços pés?
eles não sabem -ou talvez sintam- que tu não deixas de tocar estrelas
construir constelações
enveredar por estradas de Santiago e dar ocupação aos sonhos que fazem
parte dessa tua essência sensorial.
única e inimitável.
eles também gostariam de acreditar
em locais longínquos onde a fértil imaginação é partilhada por amigos de longa data.
tal como a sensibilidade e a intuição.
amigos cujos corações batem em
uníssono pois falam a mesma
linguagem.
a das pedras.
das gaivotas.
das ilhas que navegam.
das palavras vivas.
das alcateias.
a das estrelas!!!
Obrigado Mena, mais um belíssimo poema. Ainda bem que eles nabem o que sonhamos. A tua maneira de comentar os meus textos é tão gratificante. A minha maior gratidão. Abraço enorme.
Sempre de excelência o que escreve. Sábias as suas palavras.
Tantos sonhos, nem todos realizados. Mas muito mar navegado, querido poeta.
Lembra as mesinhas, com que na nossa infância se tratava o nosso mal-estar. Detestava, quando a minha mãe me punha no peito, o algodão embebido em álcool, quando me constipava.
Não esqueceu os responsos. Nem o telhado, de onde olhava o céu, menino inteligente. As estrelas que gostava de observar no céu tão belo e misterioso. Sabe-se tão pouco dele, como tão bem diz, meu amigo que tanto sabe.
Adorei, este texto tão delicado e profundo, meu poeta.
Abraço, grato e amigo.
Obrigado Maria Luiza. Sempre generosa e de uma delicada e bela escrita os seus comentários. Tão gratificante lê-la. São estas coisas que me dão força para escrever. A minha imensa gratidão. Abraço grande.